“Eu acho simplicidade algo bom, mas costuma ser consumido muito rápido. É como comida: qualquer coisa facilmente digerida simplesmente sai logo, não permanece com você. Agora algo estranho, que não consegue ser processada rápido fica com você. As pessoas ficam com aquele sentimento de “O que é isso?” […] Em um filme, por exemplo, se a experiência ficou com você, você assiste de novo, e de novo, e de novo. Ou você conversa com os seus amigos, pergunta “o que foi isso?”. E aí você começa a repensar o que você viu e o que você entendeu, e aí você compreende o significado da experiência. E é esse tipo de coisa que eu quero criar.”

Passado mais de um mês desde que eu terminei Death Stranding, eu diria que Kojima foi bem sucedido em seu objetivo. É um jogo que incentiva discussões e troca de idéias, seja pelas interpretações de certos eventos ou por teorias de sua história. Foi um jogo que eu fiquei ponderando por semanas após zerar, e sempre gosto de discutir sobre.

Esse texto não tem como propósito ser uma análise, mas sim uma discussão sobre. Será primariamente a minha interpretação sobre, portanto será um pouco mais pessoal que de costume. Também não haverá spoilers, mas boa parte do assunto que será endereçado fará mais sentido para quem o jogou.

O BOM

A maior conquista do jogo não é algo que o consumidor final adquire diretamente ao comprar. Death Stranding serve como um exemplo de que um jogo pode ser uma expressão artística mesmo a níveis AAA, uma empresa como a Sony não tem a perder dando total liberdade criativa para um desenvolvedor, e que jogos não são um produto que só mantém rentabilidade ao aderir a temas populares. O impacto que um projeto desses causa na indústria é importantíssimo em assegurar a originalidade e diversidade da mesma, e isso nos trará uma gama ainda maior de jogos no futuro, e prova que estamos longe de estagnar.

Em conquistas mais diretas no que diz respeito do jogo, ainda temos melhorias e inovações que valem a pena ser comentadas. Seu Social Strand System que foi amplamente divulgado é um dos aspectos mais interessantes do jogo. Geralmente uma experiência solitária pelo seu reduzido foco no combate e um cenário abandonado e pós-apocalíptico, interagir com equipamentos e rastros de outros jogadores traz um novo significado a conectividade em uma experiência. Entre vários títulos multiplayer que eu joguei até hoje, seja competitivo ou cooperativo, Death Stranding se ressalta no que faz. Várias vezes eu me via despreparado ou enrascado em uma situação desfavorável só para ver uma construção de outro jogador me dando a ajuda que eu precisava.

O valor dessas interações tem um impacto único porque não é um caso de um jogador fazendo algo somente por pontuação ou para uma vitória na partida. Ao jogar Team Fortress 2, por exemplo, é esperado que o médico cure seus aliados, ou que o engenheiro construa defesas e provisões para ajudar o time. No caso de Death Stranding porém, avistar um esconderijo com suprimentos a armas em um território hostil apresenta um cenário onde um (ou mais) jogadores tomaram a mesma rota que você e precisaram de uma ajuda similar. Ao criar e manter esse abrigo, todos os jogadores que passarem na mesma situação terão seu caminho facilitado por todos que chegaram até aquele ponto. Tudo isso serve perfeitamente para alimentar a narrativa de uma sociedade quebrada sendo restaurada pela união e gentileza entre as pessoas.

Outra qualidade do jogo vem da forma que o open world é integrado em seu design. Jogos do gênero costumam seguir algumas regras que dificilmente são alteradas. Ao tentar algo completamente fora desses padrões, foi possível criar um tipo de open world completamente único.

Jogos como RDR2, The Witcher 3, The Elder Scrolls/Fallout, Horizon Zero Dawn, Zelda BotW, entre vários outros todos seguem uma fórmula: Somos apresentados ao mundo dessas obras. Admiramos seus visuais e valor artístico desses mundos. Apreciamos cada caminho secundário e caverna escondida. Porém conforme avançamos na história e nos habituamos a ele, vira somente uma estrada. Um caminho tedioso até o ponto de fast travel ou uma tarefa maçante até o próximo evento de história. Por mais que eu ame algum título do gênero, dificilmente a magia do mundo se mantém durante toda a campanha.

Em Death Stranding o próprio mundo é o antagonista e o principal empecilho na nossa função. Seu cenário é composto vastamente de uma paisagem simples com temática pós apocalíptico, mas estamos sempre prestando atenção em seus detalhes. Cada pedra pode significar um tropeço e perda de durabilidade das cargas. Cada montanha pode oferecer um atalho a custo de recursos como escadas e risco de quedas com descuido. Cada estrada representa caminhos seguros onde vários jogadores passaram e por aí vai. A qualidade gráfica do jogo é mesmerizante, mas estamos constantemente observando seu terreno para analisar nossas rotas e traçar nosso caminho. O cenário se torna algo mais do que somente uma paisagem e começa a se tornar algo que precisamos interagir de fato.

São várias as qualidades do jogo, sem inchar demais eu acredito que essas sejam as mais marcantes. Houve algumas cenas com uma imersão incrível, alguns aspectos da narrativa que eu amei da forma que foi construído, entre várias outras experiências positivas. Mas nem tudo foi um mar de rosas…

O MAL

Durante a história principal houve poucos momentos onde minha experiência foi negativa, mas ao tentar platinar para liberar todos os logs e extras essas falhas foram ficando cada vez mais visíveis.

Começando pela narrativa, apesar de ter uma história bem coerente para os padrões de Hideo Kojima e no geral ser um ponto forte do jogo, há alguns soluços que o impedem de chegar em um nível realmente diferenciado. Entre essas falhas, as vezes o diálogo é expositivo demais, tendo cenas muito óbvias e simbologias muito rasas. Uma cena em particular do capítulo 3 eu não me lembro de ter ouvido nenhuma opinião positiva sobre. Uma parte que deveria ter sido impactante e inesperado se tornou ridícula. Não se limitando a isso, há alguns problemas no que se trata de o que é essencial para o entendimento do enredo e o que poderia ser extra. Há momentos onde informações demais são despejadas no jogador que não são diretamente relacionadas com o desenrolar da história, tem emails enviados por NPCs que são extremamente desnecessários e escritos de forma que parecem um copypasta de rede social.

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São erros pequenos, mas para um jogo onde a narrativa é peça central, são ressaltados comparados a outros jogos que fazem a mesma coisa. No geral ainda considero uma melhoria quando comparado a alguns projetos anteriores de Kojima, mas creio que ainda está longe de ser o melhor que pode.

Em segundo, o que provavelmente é o maior foco de críticas para quem detesta o jogo (ou seu criador), a jogabilidade. Diferente das críticas mais comuns, porém, não falo de ser um “correios simulator” (até porquê teve muitas partes dessa mecânica que achei muito bem feitas e inovadoras, mas isso é assunto pra outra hora…), mas sim de bugs e inconsistências em seu design.

Por exemplo, um dos maiores diferenciais da jogabilidade é o foco na preparação das entregas. Balancear o cargo que precisa ser entregue junto com os equipamentos necessários para entregá-los seguramente.

Teremos que passar por montanhas? Se não, podemos deixas escadas e estacas com corda de lado. Caso contrário, teremos que subir montanhas ou descer? Estacas pesam menos e ocupam menos espaço que as escadas, mas só servem para descer montanhas. Iremos por terreno hostil? Teremos que enfrentar humanos ou BTs? A escolha de armas e equipamentos é crucial nessa hora, há várias situações a se considerar e uma grande mecânica de risco e recompensa. Provavelmente foi o que mais me agradou nas suas primeiras horas. Você quer levar o máximo de cargo possível para poupar o seu tempo e conseguir o melhor placar, mas ser ganancioso demais pode fazer com que nenhuma carga seja entregue intacta.

Tudo isso vai ao dreno quando se trata de chefes. A maior parte dos chefes do jogo não exigem carga, e você é enxurrado com equipamentos por fantasmas de outros jogadores ou simplesmente largados no chão. Não demorou muito para perceber que a melhor estratégia para se enfrentar os chefes era ir sem absolutamente nada pois assim se mantinha mobilidade e agilidade e todo equipamento adquirido era imediatamente usado e descartado. Com exceção de duas boss fights que fogem desse padrão, isso se repete durante todo o jogo. Chefes com ótima apresentação, uma imersão sensacional, mas sem nenhuma sensação de perigo pois você jamais ficará sem recursos para se curar ou atacar.

Existem várias situações menores assim no jogo, mas no geral tanto na narrativa quanto na jogabilidade eu diria que o maior mal do jogo é ser uma experiência que exige um certo “respeito” quanto a sua imersão, mas nunca merece ele. Tem boss fights que te revivem imediatamente se morrer durante elas (mesmo no Hard) e casos onde você simplesmente não pode falhar. É um jogo que raramente te desafia, mas conta a história de um mundo inóspito e severo.

Mesmo para quem facilmente se imerge em histórias como eu, essas falhas ficam visíveis a cada hora a mais que se passa nelas. E é claro, de vez em quando Sam tropeça no vazio ou a moto trava em uma pedra minúscula.

As vezes a física simplesmente desiste

O KOJIMA

“Um jogo por Hideo Kojima”

Quantos desenvolvedores de jogos você conhece por nome? Atualmente isso é mais normal, e para quem seguia a indústria de perto sempre tinha alguns nomes grandes, mas é inegável que Kojima é um nome que muitos conhecem as vezes sem nem sequer ter jogado as obras dele. Em uma indústria que começou sem nem dar créditos aos programadores, Hideo Kojima estampava seu nome com os jogos que ele criava.

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Mas não é só por isso que fica difícil comentar qualquer um de seus jogos sem também mencionar ele. Hideo Kojima é o que é conhecido como um auter.

Auter, de forma simples, se refere a um criador cujo trabalhos são facilmente identificados mesmo sem crédito direto. Obras dirigidas por pessoas com uma visão criativa peculiar e bem exigentes no que fazem. Quentin Tarantino por exemplo, seus filmes são facilmente identificados pela narrativa não-linear e estetização de violência.

E isso nos leva ao ponto central de discussão sobre Death Stranding, seu criador. Obras de um auteur são complexas de ser avaliadas sem levar em consideração a pessoa que a dirigiu. Um filme violento de um diretor desconhecido é avaliado completamente diferente de um filme do Tarantino por exemplo. Isso por si só não é algo bom ou ruim, é simplesmente uma característica extra que pode alterar drasticamente os significados e qualidades de uma obra.

Death Stranding é um jogo difícil de ser avaliado de forma completamente objetiva porque ele depende muito de como a pessoa vê seu criador. A interpretação de certos artifícios pode ser completamente diferente, e ela quase sempre está atrelada na concepção do auter na visão do consumidor. Exceções a regra sempre existem, mas quem odeia um auter como pessoa quase sempre irá detestar todas suas obras, eles são naturalmente intrínsecos.

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Dentre as várias avaliações que eu li, desde “É o melhor jogo que eu joguei e algo que redefine videogames como uma mídia” até “É um jogo pretensioso e vazio sem valor como um game” eu acredito que toda interpretação dele tenha um grão de verdade. Aqui no Café ele foi nomeado como jogo do ano. Eu acho justo, como eu disse, é um marco na indústria AAA poder combinar poder criativo e rentabilidade, acho um jogo importante no que ele representa. Isso não significa que seja perfeito.

Ironicamente, isso serve também sobre a minha visão sobre o próprio Kojima. Eu o considero um criador importantíssimo. Em 1998 ele estava fazendo uso de certas funções de um console para combinar com a narrativa de um vilão psíquico. Ainda antes ele combinou interatividade e cenas de ação para visual novels. E mais recentemente, fez um jogo cujo maior diferencial é o tipo de tarefa que nós mais odiamos em games, quests de entregar, e de alguma forma conseguiu ter uma jogabilidade interessante e envolvente.

Ao mesmo tempo, sua visão de fazer “um jogo para que qualquer um possa aproveitar”, mas sem abrir mão de sua peculiar forma de montar uma narrativa causou um jogo contraditório e simplório. Sua personalidade às vezes é difícil de se lidar e compreensivelmente irrita muitas pessoas.

No final de contas, posso dizer que Death Stranding é um jogo genuíno e um tanto quanto honesto. É fácil avaliar se é o tipo de experiência que você gostaria ou não de ter, em nenhum momento fomos prometidos algo que o jogo não tenha entregado, no pior dos casos só pode ter vindo um pouco danificado (ba dum tss).

Por bem ou por mal, é um jogo por Hideo Kojima.