Melhores dos 10s – Dark Souls
É impossível relembrar a década de 2010 e não pensar em Dark Souls. Em certa medida, ele pode ser considerado o jogo mais influente desse período, bem como um dos mais importantes. Além disso, é o responsável por elevar a popularidade da From Software e do criador da série Souls, Hidetaka Miyazaki.
A From Software é um estúdio japonês fundado em meados dos anos 80 e que viria a ser conhecido na década seguinte pelas franquias King’s Field e Armored Core. No entanto, foi apenas no fim dos anos 2000 que um de seus títulos mais importantes viu a luz do dia: Demon’s Souls (2009), terceiro game dirigido por Miyazaki.
Demon’s já trazia a essência e a alma (perdão pelo trocadilho) que definiriam os próximos cinco jogos do estúdio: uma narrativa esparsa, aberta a interpretações dos próprios jogadores; alto nível de dificuldade no combate; boss fights inspiradas e que são grandes destaques; lore riquíssima e revelada através da descrição de itens encontrados pelo jogador e do cenário, entre outros detalhes. Eram características boas o bastante para garantir que o game ganhasse um status de clássico cult e angariasse um certo número de fãs, mesmo não sendo exatamente um grande sucesso de vendas. E então veio Dark Souls, seu sucessor espiritual.
Dark Souls foi lançado para PS3 e Xbox 360 no Japão em 22 de setembro de 2011, chegando ao ocidente no mês seguinte e ao PC em 2012. O jogo foi bem recebido pela crítica e logo começou a conquistar um crescente número de fãs e entusiastas através do boca a boca. Boa parte da atenção inicial que ele recebeu girava em torno da sua famigerada dificuldade e nível de desafio. É inclusive comum ouvir muitos jogadores dizerem que Dark Souls pode ser difícil, mas também extremamente justo e que mortes nunca são culpa do game e sim de deslizes cometidos por quem segura o controle (embora eu não concorde 100% com essa afirmação). De qualquer maneira, DS não deve ser resumido apenas como um “jogo difícil”. Há muito mais que isso.
Como dito acima, Dark Souls tem o mesmo esqueleto estrutural de Demon’s Souls, mas dessa vez trata-se de um jogo lacônico que te coloca num mundo caído que um dia fora dominado por dragões, até surgir o fogo e, com ele, criaturas que encontraram as Almas dos Lordes nas tais chamas e, munidos do poder delas, desafiaram os dragões, derrotando-os e iniciando a Era do Fogo.
Você assume o papel de um undead (morto-vivo) tempos depois do início dessa era. O mundo já não é mais próspero e tampouco sustentado pelas chamas, que agora são meras brasas. Há pouca esperança, exceto pela lenda que diz que um dia um undead seria escolhido para chegar a Lordran (a terra dos Antigos Lordes) e definir o futuro da humanidade. E isso é basicamente o que podemos depreender da abertura de Dark Souls. Eu sei que é confuso.
Há uma certa beleza nessa ideia de não dar tudo de mão beijada ao jogador, entretanto. Nas palavras de Vaatividya (que tem um canal no YouTube totalmente dedicado a destrinchar a lore dos jogos da From): “Eu acho que uma das razões pelas quais Dark Souls é considerado difícil não é por sua dificuldade, mas pela dificuldade de assimilar o mesmo” e ele está totalmente correto ao afirmar isso. Dark Souls é um jogo difícil de começar a assimilar porque ele te força a aprender a dançar conforme sua música, seja para entender o que diabos a história tenta dizer, seja para aprender o moveset de um chefe que chutou o seu traseiro por horas a fio. E é justamente através disso que ele captura o que realmente faz um jogo ser uma experiência única e recompensadora. É a forma como você interage com esse mundo (dentro e fora dele).
A exigência de interpretação da parte dos jogadores também é algo feito deliberadamente. Durante sua infância, Hidetaka Miyazaki adorava ler livros de fantasia. O detalhe é que ele encontrava a grande maioria deles apenas em inglês, uma língua que não dominava completamente, o que o obrigava a imaginar as partes que não conseguia compreender. Isso molda a forma como a história em seus jogos é contada e, consequentemente, cria uma numerosa comunidade de pessoas que se dedicam a decifrar, discutir, interpretar e preencher as lacunas desses jogos.
E comunidade é outro aspecto forte e impressionante de Dark Souls. Foi essa comunidade que, através do boca a boca, ajudou a divulgar a franquia. É possível até traçar paralelos com o que ocorreu com o primeiro The Legend of Zelda (1986), outro título que trazia pouquíssimas informações a respeito de seu mundo e vinha recheado de segredos misteriosos. Quem viveu aquela época frequentemente relata como era divertido passar a tarde toda jogando TLoZ e desvendando suas surpresas para no dia seguinte compartilhar as experiências com os colegas de escola. Algo similar ocorre com Dark Souls, basta ver como a internet é recheada de vídeos sobre o jogo, como há inúmeros fóruns dedicados a ele e até mesmo como sua Wiki traz informações cruciais e que são compartilhadas por um sem-número de pessoas.
Claro, existe também um lado negativo dessa comunidade. É comum ouvir relatos de algumas pessoas que tentam se aventurar pelos jogos e são criticadas por veteranos ao jogarem mal. É o famoso “git gud” que desencoraja muitas pessoas a prosseguirem com a jornada. Mas, pelo menos da minha experiência, isso compõe uma parcela pífia de fãs da franquia Soulsborne. O que posso dizer é que algumas das melhores conversas que tive foi com amigos que conheci a partir do jogo.
Além do mais, é difícil dizer o quanto fico feliz quando indico Dark Souls (ou Bloodborne ou Sekiro) para alguém e a pessoa acaba gostando e me agradecendo depois por eu tê-la incentivado a continuar jogando, sem desistir. O lado positivo completamente se sobrepõe ao negativo.
E aí entra um ponto que eu gostaria de elaborar. Um aspecto brilhante em Dark Souls é como o jogo testa o jogador logo de cara e continua fazendo isso conforme progredimos (embora para muita gente ele fique mais fácil próximo do fim). É outra filosofia de design cara a Miyazaki. Para ele, o desafio, o grande número de mortes e esse esquema meio “tentativa e erro” servem para nos ensinar a dominar o game. A cada morte, aprendemos um pouco, ganhamos experiência. E insistimos e falhamos e aí insistimos novamente, até superarmos cada área, cada chefe, cada mistério de Dark Souls.
É quase como o papel desempenhado pelo próprio undead criado por nós. As mortes são inúmeras, mas jamais desistimos, jamais nos tornamos “hollow” (estado de vazio dos personagens que perderam toda a sua humanidade). E com isso vem grande satisfação. Qualquer um que tenha derrotado Orstein & Smough após horas preso nesses chefes entende bem a sensação de conquista que Dark Souls proporciona. É difícil descrever em palavras, mas é uma sensação ótima e ímpar.
E nem falei ainda sobre como o level design desse jogo é genial. Lordran é palco de um dos mundos mais interessantes já feitos. No momento em que chegamos a Firelink Shrine já somos confrontados com algumas escolhas de lugares para onde podemos prosseguir (dica: se você foi para Undead Burg, você está no caminho “certo”) e o mais legal é perceber, depois de horas, que praticamente todas as áreas estão conectadas entre si. A minha cara de “EITA!” na primeira vez que desci pelo elevador em Undead Church e voltei para Firelink Shrine é uma que eu gostaria que muito mais pessoas tivessem a oportunidade de fazer, porque só jogando mesmo para entender como essa interconectividade é legal.
Não só isso, como também é bacana observar todos os detalhes cuidadosamente colocados pela From nos cenários. Cada pequeno pedaço contando uma história ou deixando algum detalhe intrigante no ar. Fora o combate… É verdade que ele é mais lento do que o dos jogos seguintes no catálogo da From, mas nem por isso menos interessante ou divertido. O sistema de bonfires (que funcionam como “checkpoints”, restaurando os pontos de vida do jogador, recarregando seu Estus Flask – a “poção” de cura – e revivendo os inimigos) também se tornou icônico e vários jogos passaram a usá-lo também (um exemplo recente é Star Wars Jedi: Fallen Order).
Falando em jogos, a quantidade de games que se inspiram em Dark Souls não para de crescer, seja no espaço AAA ou no cenário indie. Alguns nomes famosos são Nioh, Ashen, The Surge, Remnant From the Ashes, Code Vein, Lords of the Fallen, Hollow Knight, Dead Cells… se for pensar, até mesmo Shovel Knight tem alguma mecânica que pode ser comparada a Dark Souls (ao morrer, você tem a oportunidade de recuperar parte do seu dinheiro, assim como em DS você tem a chance de recuperar as suas almas acumuladas se retornar ao ponto em que morreu anteriormente).
A maior conquista de Dark Souls para mim, no nível pessoal, vai além da soma de suas partes. Para mim, DS é praticamente o Ocarina of Time de seu tempo. Ele é, em certa medida, uma obra-prima falha. Digo isso porque o game obviamente tem defeitos. Lost Izalith é o mais gritante (e incompleto) deles. Alguns pontos mais próximos ao final da campanha são infinitamente inferiores à sua primeira metade, que para muitos é perfeita. É possível usar alguns exploits que completamente quebram a dificuldade do jogo se você souber o que está fazendo. Mas… no fim das contas, essas coisas não importam tanto. O resultado final é um dos maiores e melhores jogos de todos os tempos, não só dos anos 2010.
Dark Souls é um dos raros jogos que me dão a mesma sensação que eu sentia com Ocarina quando eu era criança. Algo difícil de explicar, mas que talvez possa ser sintetizado usando a palavra “magia”. Dark Souls (bem como todo o catálogo recente da From, em especial Bloodborne, o meu favorito) tem algo diferenciado, algo que o torna verdadeiramente especial e inesquecível. E é justamente essa magia que me faz querer retornar para esse mundo dos mortos-vivos de novo e de novo. É um daqueles jogos que vão ser falados e estudados por décadas e décadas de uma maneira que apenas os games verdadeiramente marcantes são.