Enquanto eu analisava a lista de animes do Netflix, procurando por algo novo para assistir, me deparei com Sangatsu no Lion. A arte me pareceu promissora, mas a descrição da obra me afastou um pouco ao mencionar o cotidiano de um jogador de shogi. Bem, até onde eu sabia, shogi era basicamente o xadrez japonês, e não pude deixar de torcer o nariz para essa temática. Qual graça teria para mim? Ignorei e procurei outras coisas para assistir.
Meses depois, o comentário de um amigo no Twitter acabou despertando novamente minha curiosidade. Ele recomendava Sangatsu no Lion como um anime emotivo, repleto de reflexões sobre o comportamento humano, a depressão, o bullying, a solidão. E assim acabei convencida a dar uma chance ao “anime de shogi”, como passei a chamá-lo mentalmente, e não me arrependi em nenhum momento.
Sangatsu no Lion (March Comes in like a Lion) é uma animação de duas temporadas baseada no mangá original de Chica Umino, mais conhecida por seu trabalho em Honey & Clover. Animado pelo estúdio Shaft, a obra conta com 44 episódios e uma adaptação live-action, mas focaremos apenas na versão em anime. Disponível completa no Netflix, a obra acompanha a vida de Kiriyama Rei, um adolescente jogador de shogi profissional que acumula diversas tragédias em seu passado. Rei é solitário, depressivo e tem o shogi como foco único de sua existência. Ele passa cada minuto livre de seu dia estudando, praticando e participando de torneios, à ponto de relegar até mesmo cuidados pessoais, como comer e beber água.
A obsessão de Rei com o shogi tem a ver com seu instinto de sobrevivência, o motivo pelo qual ele ainda se levanta todos os dias. Em meio à sua solidão, Rei conhece a família Kawamoto, composta por três irmãs órfãs e o avô delas, que praticamente “adotam” Rei como membro da família e passam a ter tamanho carinho e cuidado com ele e que acabam por retirar Rei de sua bolha protecionista. Assim, todos os personagens acabam crescendo juntos e seus dramas pessoais se tornam mais fáceis de carregar com o apoio dos amigos.
A obra consegue abordar diversos temas inerentes à natureza humana de forma sensível e próxima, sejam eles pesados ou leves. Conseguimos sentir de perto a frustração dos personagens, o desespero, a surpresa, a euforia. Vibramos com suas pequenas vitórias e choramos com suas falhas; é como se fôssemos nós mesmos a sentir aquelas emoções. A sensação de abandono, de não se encaixar entre os demais, de ver injustiças e não poder revidar, de se esforçar para ser forte por alguém… Todos os sentimentos representados nessa obra são comuns à qualquer pessoa, por isso é fácil para o espectador se sentir conectado àqueles personagens. Eles são tão humanos, em seus sentimentos e sofrimentos, quanto nós.
A trilha sonora consegue acompanhar bem os sentimentos passados pelo anime. Segue cada subida e descida de humor, abraça os momentos tristes e explode com os momentos de alívio cômico e celebração. A animação é consistente e comum à obras do gênero, sem grandes diferenciais. Como a obra é muito emotiva, são comuns closes no rosto dos personagens ou os planos nos quais ações são executadas em silêncio, dando destaque para o acontecimento e deixando o espectador na tensão.
A parte de shogi é um show à parte. O que eu temia que fosse ser chato e desinteressante se tornou divertido, já que a própria obra parte do pressuposto de que “shogi é chato” e decide, em um certo momento, ensinar às crianças (e ao espectador) como jogar shogi com uma música fofinha usando gatos gordinhos como peças de shogi. De forma divertida e descontraída, ele tenta situar melhor o funcionamento do tabuleiro de shogi, algo que, querendo ou não, o espectador vai querer saber, já que nosso protagonista vive em função desse jogo tradicional japonês. No mangá, os comentários de explicação da cultura e regras do shogi ficam por conta do jogador profissional Manabu Senzaki.
Os personagens secundários tem bastante destaque, e alguns deles tem seus arcos próprios, que exploram sua vida, seus dramas pessoais e, no caso dos jogadores, a forma como o shogi se envolve com tudo isso, seja como válvula de escape ou como uma bóia salva-vidas. Os arcos de Sakutarou (o jogador mais velho de shogi), Nikaidou e Shimada, por exemplo, são ótimos exemplos do desenvolvimento primoroso dos personagens e seus relacionamentos profundos com o shogi.
Sangatsu no Lion é uma obra onde não há medo de falar sobre sentimentos, independente da idade, do sexo ou da situação. Os personagens riem com vontade, e choram com vontade também. Cada lágrima em queda livre, cada riso escancarado e cada grito desesperado chegam a ser viscerais de tão sinceros. E a melhor palavra para definir essa obra é sinceridade; a forma como ela explora a importância das relações humanas, das conexões entre nós e como elas podem nos salvar dos nossos mais profundos poços de solidão.
3 Comments
Sangatsu no Lion – shogi, depressão e sobrevivência – Anne Souza – Portfolio
[…] Originalmente postado em Café com Geeks […]
Marcos
Concordo com tudo o que disse. Também tive resistência para assistir. Mas assistir 1 episódio para mim já foi suficiente para amar kkkkk. Espero que saia logo uma nova temporada.
Daniel
Essa obra é muito bem escrita pra mim
Essa pegada mais realista nós animes faz mais sentido o protagonista vai se desenvolvendo com o desenrolar da história ele podia se casar com a Akari